Caso ainda não tenha lido, leia as partes 1 e 2 antes.
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Esconderijo cognitivo
Portanto, seria a religião uma adaptação ou um subproduto da nossa evolução? Talvez um dia vamos encontrar evidências convincentes de que a capacidade para pensamentos religiosos, ao invés da “religião” sob a forma moderna de instituições sóciopolíticas, contribuiu para a adequação em tempos ancestrais. Por enquanto, os dados apontam para uma conclusão mais modesta: pensamentos religiosos parecem ser uma propriedade emergente de nossa capacidade cognitiva padrão.
Conceitos e atividades religiosas sequestram nossos recursos cognitivos, assim como a música, as artes visuais, a culinária, a política, as instituições econômicas e a moda. Este sequestro ocorre simplesmente porque a religião oferece alguma forma do que os psicólogos chamariam de superestímulos. Assim como a arte visual é mais simétrica e suas cores mais saturadas do que é geralmente encontrado na natureza, agentes religiosos são versões bastante simplificadas de agentes humanos ausentes, e os rituais religiosos são versões bastante estilizadas dos procedimentos de precaução. O tal sequestro também ocorre porque as religiões facilitam a expressão de certos comportamentos. Esse é o caso do compromisso com um grupo, que é mais digno de confiança quando formulado como a aceitação de crenças bizarras ou não óbvias.
Não devemos tentar identificar a origem única da crença religiosa, porque não há nenhum domínio exclusivo da religião na mente humana. Diferentes sistemas cognitivos lidam com representações de agentes sobrenaturais, de comportamentos ritualizados, de comprometimentos grupais e assim por diante, da mesma maneira que cor e forma são manipuladas por diferentes partes do sistema visual. Em outras palavras, o que torna convincente um conceito de deus não é o mesmo que faz um ritual intuitivamente atraente, ou o que faz uma norma moral autoevidente. A maioria das religiões modernas organizadas se apresenta como um pacote que integra todos esses elementos díspares (a moralidade ritual, a metafísica, a identidade social) em uma doutrina consistente e prática. Mas isso é pura publicidade. Esses domínios permanecem separados na cognição humana. A evidência mostra que a mente não tem uma rede de crença, mas uma miríade de redes distintas que contribuem para tornar as reivindicações religiosas bastante naturais para muitas pessoas.
As emergentes descobertas dessa abordagem evolutiva cognitiva desafiam dois princípios centrais da maioria das religiões estabelecidas. Primeiro, a noção de que o seu credo particular difere de todas as demais (supostamente equivocadas) crenças; em segundo lugar, que é só por causa de acontecimentos extraordinários ou a real presença de agentes sobrenaturais que as idéias religiosas têm tomado forma. Pelo contrário, agora sabemos que todas as versões de religião são baseadas em suposições tácitas muito semelhantes, e que tudo leva a imaginar que agentes sobrenaturais são mentes humanas normais processando informação em sua forma mais natural.
Sabe-se que, mesmo aceitando-se essas conclusões, é improvável que se enfraqueça o compromisso religioso. Algumas formas de pensamento religioso parecem ser o caminho de menor resistência para os nossos sistemas cognitivos. Em contrapartida, a descrença é geralmente o resultado de um deliberado e esforçado trabalho contra nossas disposições cognitivas naturais – dificilmente é a ideologia mais fácil para se propagar.
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Pascal Boyer pertence aos Departamentos de Psicologia e de Antropologia da Universidade Washington em Saint Louis, Missouri, EUA, e é o autor do livro Religion Explained. Seu e-mail é: pboyer@wustl.edu
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Tradução livre de Brunno Frigo da Purificação
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Há uma matéria da Revista Super Interessante está bastante relacionada com esse texto (e inclusive faz referências a Pascal Boyer).