Arquivo | fevereiro, 2009

Texto Avulso I

18 fev

 

Carecíamos de uma decisão. Eu observava a todos, furtivamente, as cabeças baixas. Evitavam o encontro de olhares. Evitavam, evitávamos. Evitávamos na esperança de nos adiarmos a responsabilidade, de nos esquivarmos da decisão inevitável. Crescia em meu peito uma certa raiva daqueles todos, inertes como eu. Éramos tantos, a possibilidade grande de uma iniciativa louvável, um atalho para findar nossa espera e atenuar a angústia coletiva. Ninguém dizia palavra, faltava coragem para principiar frase. O silêncio incomodava, revolvia o terreno das calmarias, principiava suplício lento, angustioso.

Mas tínhamos também um certo conforto, há que se reconhecer: uns bons raios de sol, cordiais calorosos, espalhavam-se naquela grande sala. Uma torrente de luz, combatendo as trevas e minimizando aquele nosso sofrer. A iluminação, a inspiração. Inspiração que alguém juntou ânimo para dizer:

– A casa é tão grande… e agora temos só dois cômodos.

Suspirou. Expirou, expiração. Os demais esperávamos uma continuidade, um seguimento de raciocínio e conseqüências de decisão. Em seu silêncio, disse-nos que precisava calar-se. Olhei então para o outro cômodo, a porta aberta revelava um anexo de igual tamanho à sala em que nos encontrávamos. Pela mesma porta aberta, transpassava aquela intensa luz solar que alumiava o nosso aposento. Voltei-me então para a outra extremidade da sala, a fronteiriça parede de nossa liberdade. Ali, a porta estava trancada, a consenso de todos. Silenciosa conformidade. A concordância sem palavras das opiniões: continuaria fechada, pois do outro lado era perigoso.

Estávamos limitados àqueles dois aposentos: a sala e o anexo pelo qual recebíamos o sol. Inicialmente, tínhamos acesso a todos os compartimentos da casa. Mas isso foi há tempos e tempos, imemoráveis: ninguém mais se lembrava dos aposentos mais distantes, na outra extremidade da casa. Até que ouvimos os primeiros ruídos, os movimentos iniciais dos invasores. Prudentemente, trancamos aquele cômodo, no outro extremo, e nos reservamos aos demais. Depois, acostumados à privação daquele saudoso vestíbulo, tomaram-nos outras salas adjacentes. Sensatamente, nos enclausuramos nos lugares restantes, ainda numerosos e abastados. E, por inércia e costume aos tolhimentos, os ofensores usurparam quase a totalidade do edifício. Por misericórdia ou por divertimento, confinaram-nos aos dois cômodos restantes, na extremidade posterior.

Eu observava a todos, furtivamente: as cabeças baixas. Carecíamos de uma decisão.

Através da porta trancada, um ruído surdo delatou a movimentação do outro lado. Ratos. Muitos, infestantes roedores. As cabeças se levantam, os olhares se encontram na esperança de uma maior sentença, uma disposição de iniciativa. Subitamente, um estrondo maior: algo volumoso chocou-se contra o chão no misterioso aposento adjacente. Um frêmito de pavor arrepia-nos a pele. Os olhos muito abertos, esbugalhando a necessidade de algo fazer. A ameaça espreitando do outro lado da porta. Os corpos inertes, a respiração suspensa, esperando o devir.

Mirei a janela do anexo: o sol, a luz. Princípio de esclarecimento, me influi com inesperada coragem. Firmeza de propósito, vindo sabe-se lá de onde. Ali é que não podia ficar, braços cruzados e pés plantados enquanto nos expulsavam da casa. Deliberadamente levantei-me, e os olhares todos me acompanharam. Olhei fixamente a porta trancada, procurei aprovação no rosto e nos gestos de cada um. Reprovaram-me. Voltei-me para a porta trancada, os ruídos diminuindo…

Os alvoroços cessando: todo o silêncio preencheu meus ouvidos. E meus olhos só alcançavam a porta cerrada. A tendência para o escuro, inclinação ao desconhecido. Atendendo ao seu chamado, eu só via a porta para a qual eu caminhava. Se mais além pudesse ver, notaria que as feições e os trejeitos dos demais denunciavam espanto diante da irresponsabilidade de meu ato. Só a porta era visível e só o silêncio audível. Nenhuma voz ou qualquer olhar poderia censurar-me ou interromper-me a desvairada loucura, a resolução irrevogável: destrancar a porta e mergulhar na desconhecida travessia de todos aqueles cômodos obscurecidos pelo meu esquecimento.

(Brunno, 08/08/2008)

Fragmento

11 fev

Um texto de origem budista, que nos lembra certas verdades. E cada um veja como isso melhor se aplica à sua própria experiência existencial:

“Primeiro, a velhice virá algum dia e não poderei evitá-lo. Segundo, é possível que eu adoeça e não posso evitar esta possibilidade. Terceiro, a morte física virá até mim algum dia e eu não posso evitá-lo. Quarto, todas as coisas que amo e de que gosto estão sujeitas à mudança, à decadência e à separação, e não posso evitá-lo. Quinto, eu sou o resultado das minhas próprias ações, e sejam quais forem os meus atos, bons ou maus, serei o herdeiro deles.”

(The Mind and Its Control”, Swami Budhananda, Advaita Ashrama, Calcutá, Índia, 1992, pp. 33-34.)

Reflexões sobre futebol

4 fev

 

Eu sempre gostei de futebol. Quando criança, essa paixão se manifestava de muitas formas: nas partidas quase diárias do campinho atrás do prédio em que morava, nas coleções de álbuns de figuras, no conhecimento da história das Copas do Mundo, ao assistir aos jogos (qualquer tipo de jogo) pela televisão, ou ao comparecer nas arquibancadas do Moisés Lucarelli. Aos poucos, essa paixão foi se abrandando. Mas, apesar do meu saudosismo em matéria de futebol, ainda aprecio muito o esporte.

Portanto, em que pese o assunto muito particular, e o provável desgosto de alguns eventuais leitores sobre este tema, pretendo falar um pouco sobre isso. Sim, futebol.

A rodada deste fim de semana que passou me fez rememorar a fatídica final do Campeonato Paulista do ano passado. Nova derrota da Ponte Preta para o Palmeiras. Ou, o que é pior: para o time “misto” (quase reserva) do Palmeiras, em Campinas. Seguiram-se algumas outras memórias a reboque. Em seus atuais 108 anos de história, o escrete alvinegro de Campinas ainda não se sagrou campeão em uma competição futebolística. Entre seus melhores desempenhos, destaco um terceiro lugar brasileiro em 1981 (quase-quase), cinco vice-campeonatos paulistas em 1970, 1977, 1979, 1981 e 2008 (quaaaaase), e um vice-campeonato do Campeonato Brasileiro da série B em 1997.

Enfim, torcer pela Ponte Preta (minha sina) tem sido assim até então. Não debutamos entre os seletos campeões de futebol dessa “pátria de chuteiras”.

Quando eu era garoto, entre meus 7 a 10 anos (meados e fim da década de 80), os meninos organizávamos um campeonato de futebol de botão, diversão que preenchia muitas tardes de nossas férias (e eventualmente, embora com menos freqüência, também os dias letivos). Naquela época, não me lembro de haver essa “febre” por clubes europeus, como se observa entre os garotos de hoje: Milan, Chelsea, Manchester, Real Madri, e afins. O futebol tupiniquim parecia estar mais em alta, e o jogo era um pouco mais romântico e bonito de se ver (note meu saudosismo, novamente). Por isso, cada garoto escolhia um clube nacional (geralmente o de sua preferência, ou algum outro grande time caso o seu já houvesse sido escolhido), sorteavam-se grupos, cruzavam-se os times, formava-se a tabela e então os jogos começavam.

Lembro-me então que, em uma das edições destas épicas disputas, certa vez cheguei à final do “campeonato brasileiro de futebol de botão da nossa vizinhança”, comandando orgulhosamente um punhado de botões da Associação Atlética Ponte Preta (como na maioria dos campeonatos em que então participei). Na outra metade do “estrelão” (nome dado ao campo do futebol de botão), estavam os botões do Clube Atlético Mineiro, comandados por um vizinho. E então, naquela fatídica tarde de verão, ocorreu a “batalha dos alvinegros”. Não me lembro exatamente o placar, lembro-me de ter feito alguns gols (e dá-lhe Chicão, o botão-centroavante da camisa número 9) e tomado outros tantos. E então, “crepúsculo de jogo”: “fecham-se as cortinas e encerra-se o placar” (como dizia Fiori Giglioti – haja saudosismo!). Por fim, a Ponte Preta foi… vice-campeã.