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Texto Avulso II

17 abr

 

Está um dia claro, o céu azul e o sol radiante. É um belo dia para se caminhar, e passeio por algumas trilhas conhecidas, outras nem tanto. Desço uma ladeira íngrime, por um ainda desconhecido caminho sinuoso. Inesperadamente, encontro-me em um mirante com uma vista muito bonita. Eu nunca havia mirado a paisagem daquele ponto da montanha.

Observo a minha volta, para certificar-me a novidade do local. Há algumas flores do campo, balançando-se levemente ao toque da brisa que sopra naquela altura. Vejo então, um pouco mais distante, aproximar-se um homem, abrindo caminho pela vegetação. Parece vagar sem rumo certo, fora da trilha existente e olha para todos os lados. Talvez esteja perdido. Carrega nas costas uma pequena mochila. Em uma das mãos leva um cajado e, na outra, segura uma flor silvestre branca, recém-colhida, a qual de vez em quando aproxima de seu nariz e sorri ao apreciar seu odor.

Olhando bem, talvez o homem não esteja perdido. É provável que seja um morador da região, explorando o espaço e descobrindo recantos. Pois agora, ao chegar mais perto, vejo que ele está de fato contente e despreocupadamente contempla a paisagem distante. É uma figura excêntrica, esse notável desconhecido.

E aproximo-me de tal maneira que ele percebe minha presença. Vira-se para minha direção e, sem surpresas, cumprimenta-me à maneira dos desconhecidos:

– Está um lindo dia, não?

– Pois é. Um belo dia… – fui respondendo, até ser interrompido.

– Um belo dia para caminhar. Estou a vagar por algum tempo, sem saber exatamente onde estou. Você sabe me dizer que lugar é este?

– Eu também não o conhecia. Resolvi pegar uma trilha ainda não conhecida e… – novamente fui interrompido.

– Ah, você também se aventura por caminhos não trilhados?

– Bem, na verdade, raras vezes. Mas hoje resolvi seguir uma destas e aqui estou. Sei voltar, mas também não sei onde estou.

– Aprecio as trilhas menos percorridas. Às vezes, desafio-me a abrir um novo caminho. – e silenciou-se por um longo instante, mirando as montanhas distantes. Resolvi quebrar o silêncio:

– E para onde você está indo?

– Eu vou chegar onde ninguém foi capaz de chegar. – responde-me com o olhar ainda fixo no horizonte.

Enquanto procuro as palavras para me despedir e voltar, sua voz me detém:

– Vou tentar me divertir e aprender o máximo possível nessa viagem. Afinal, é para isso que serve a viagem, não? Ah sim, diversão e  aprendizagem! Eu confio em mim mesmo, levo comigo o suficiente e necessário. – e sacode sua mochila, esboçando um leve sorriso.

– Se você está confiante, então não tem medo de nada? – essa foi a única pergunta possível no momento, embora me arrependa agora, que as palavras me soam estúpidas e inúteis depois de proferidas.

– Confiar não necessariamente significa deixar todo medo de lado. – e então ele volta seu olhar para mim. – Na verdade, nesse momento, tenho um medo. Um medo apenas, eu acho.

– Medo de quê? – e então de repente o homem se parece menos distante, menos estranho.

– Só tenho medo de ter que abandonar a jornada sem chegar lá. Mas também trago uma esperança. – e sorrindo novamente balança sua sacola às costas. – Levo comigo a esperança de que estes caminhos todos, já trilhados e ainda por vir, me tornarão em alguém melhor. E como esta esperança é maior que aquele medo, sigo marchando sob esta maravilhosa condenação de não parar.

– E onde é lá? Onde realmente você está indo? – eu arrisco, surpreso com suas respostas.

– Já lhe disse. Lá é onde ninguém foi capaz de chegar, pois o caminho é individual. Mas é também onde, paradoxalmente, todos vão se encontrar.

Eu, que estou quase me convencendo de sua excentricidade beirando à loucura, tento me despedir:

– Bom, então desejo-lhe sorte na viagem… desculpe-me, como se chama?

– Nomes e rótulos nem sempre dizem muito a respeito sobre quem somos. Mas alguns me chamam de louco. Também desejo-lhe uma boa jornada. E nos reencontramos lá. Lá… – e em seguida vira-se e torna a caminhar, vagando sem se preocupar.

(Brunno, 17/04/2009)

Texto Avulso I

18 fev

 

Carecíamos de uma decisão. Eu observava a todos, furtivamente, as cabeças baixas. Evitavam o encontro de olhares. Evitavam, evitávamos. Evitávamos na esperança de nos adiarmos a responsabilidade, de nos esquivarmos da decisão inevitável. Crescia em meu peito uma certa raiva daqueles todos, inertes como eu. Éramos tantos, a possibilidade grande de uma iniciativa louvável, um atalho para findar nossa espera e atenuar a angústia coletiva. Ninguém dizia palavra, faltava coragem para principiar frase. O silêncio incomodava, revolvia o terreno das calmarias, principiava suplício lento, angustioso.

Mas tínhamos também um certo conforto, há que se reconhecer: uns bons raios de sol, cordiais calorosos, espalhavam-se naquela grande sala. Uma torrente de luz, combatendo as trevas e minimizando aquele nosso sofrer. A iluminação, a inspiração. Inspiração que alguém juntou ânimo para dizer:

– A casa é tão grande… e agora temos só dois cômodos.

Suspirou. Expirou, expiração. Os demais esperávamos uma continuidade, um seguimento de raciocínio e conseqüências de decisão. Em seu silêncio, disse-nos que precisava calar-se. Olhei então para o outro cômodo, a porta aberta revelava um anexo de igual tamanho à sala em que nos encontrávamos. Pela mesma porta aberta, transpassava aquela intensa luz solar que alumiava o nosso aposento. Voltei-me então para a outra extremidade da sala, a fronteiriça parede de nossa liberdade. Ali, a porta estava trancada, a consenso de todos. Silenciosa conformidade. A concordância sem palavras das opiniões: continuaria fechada, pois do outro lado era perigoso.

Estávamos limitados àqueles dois aposentos: a sala e o anexo pelo qual recebíamos o sol. Inicialmente, tínhamos acesso a todos os compartimentos da casa. Mas isso foi há tempos e tempos, imemoráveis: ninguém mais se lembrava dos aposentos mais distantes, na outra extremidade da casa. Até que ouvimos os primeiros ruídos, os movimentos iniciais dos invasores. Prudentemente, trancamos aquele cômodo, no outro extremo, e nos reservamos aos demais. Depois, acostumados à privação daquele saudoso vestíbulo, tomaram-nos outras salas adjacentes. Sensatamente, nos enclausuramos nos lugares restantes, ainda numerosos e abastados. E, por inércia e costume aos tolhimentos, os ofensores usurparam quase a totalidade do edifício. Por misericórdia ou por divertimento, confinaram-nos aos dois cômodos restantes, na extremidade posterior.

Eu observava a todos, furtivamente: as cabeças baixas. Carecíamos de uma decisão.

Através da porta trancada, um ruído surdo delatou a movimentação do outro lado. Ratos. Muitos, infestantes roedores. As cabeças se levantam, os olhares se encontram na esperança de uma maior sentença, uma disposição de iniciativa. Subitamente, um estrondo maior: algo volumoso chocou-se contra o chão no misterioso aposento adjacente. Um frêmito de pavor arrepia-nos a pele. Os olhos muito abertos, esbugalhando a necessidade de algo fazer. A ameaça espreitando do outro lado da porta. Os corpos inertes, a respiração suspensa, esperando o devir.

Mirei a janela do anexo: o sol, a luz. Princípio de esclarecimento, me influi com inesperada coragem. Firmeza de propósito, vindo sabe-se lá de onde. Ali é que não podia ficar, braços cruzados e pés plantados enquanto nos expulsavam da casa. Deliberadamente levantei-me, e os olhares todos me acompanharam. Olhei fixamente a porta trancada, procurei aprovação no rosto e nos gestos de cada um. Reprovaram-me. Voltei-me para a porta trancada, os ruídos diminuindo…

Os alvoroços cessando: todo o silêncio preencheu meus ouvidos. E meus olhos só alcançavam a porta cerrada. A tendência para o escuro, inclinação ao desconhecido. Atendendo ao seu chamado, eu só via a porta para a qual eu caminhava. Se mais além pudesse ver, notaria que as feições e os trejeitos dos demais denunciavam espanto diante da irresponsabilidade de meu ato. Só a porta era visível e só o silêncio audível. Nenhuma voz ou qualquer olhar poderia censurar-me ou interromper-me a desvairada loucura, a resolução irrevogável: destrancar a porta e mergulhar na desconhecida travessia de todos aqueles cômodos obscurecidos pelo meu esquecimento.

(Brunno, 08/08/2008)