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Religião: obrigado a acreditar? – parte 3

27 fev

Caso ainda não tenha lido, leia as partes 1 e 2 antes.

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Esconderijo cognitivo

Portanto, seria a religião uma adaptação ou um subproduto da nossa evolução? Talvez um dia vamos encontrar evidências convincentes de que a capacidade para pensamentos religiosos, ao invés da “religião” sob a forma moderna de instituições sóciopolíticas, contribuiu para a adequação em tempos ancestrais. Por enquanto, os dados apontam para uma conclusão mais modesta: pensamentos religiosos parecem ser uma propriedade emergente de nossa capacidade cognitiva padrão.

Conceitos e atividades religiosas sequestram nossos recursos cognitivos, assim como a música, as artes visuais, a culinária, a política, as instituições econômicas e a moda. Este sequestro ocorre simplesmente porque a religião oferece alguma forma do que os psicólogos chamariam de superestímulos. Assim como a arte visual é mais simétrica e suas cores mais saturadas do que é geralmente encontrado na natureza, agentes religiosos são versões bastante simplificadas de agentes humanos ausentes, e os rituais religiosos são versões bastante estilizadas dos procedimentos de precaução. O tal sequestro também ocorre porque as religiões facilitam a expressão de certos comportamentos. Esse é o caso do compromisso com um grupo, que é mais digno de confiança quando formulado como a aceitação de crenças bizarras ou não óbvias.

Não devemos tentar identificar a origem única da crença religiosa, porque não há nenhum domínio exclusivo da religião na mente humana. Diferentes sistemas cognitivos lidam com representações de agentes sobrenaturais, de comportamentos ritualizados, de comprometimentos grupais e assim por diante, da mesma maneira que cor e forma são manipuladas por diferentes partes do sistema visual. Em outras palavras, o que torna convincente um conceito de deus não é o mesmo que faz um ritual intuitivamente atraente, ou o que faz uma norma moral autoevidente. A maioria das religiões modernas organizadas se apresenta como um pacote que integra todos esses elementos díspares (a moralidade ritual, a metafísica, a identidade social) em uma doutrina consistente e prática. Mas isso é pura publicidade. Esses domínios permanecem separados na cognição humana. A evidência mostra que a mente não tem uma rede de crença, mas uma miríade de redes distintas que contribuem para tornar as reivindicações religiosas bastante naturais para muitas pessoas.

As emergentes descobertas dessa abordagem evolutiva cognitiva desafiam dois princípios centrais da maioria das religiões estabelecidas. Primeiro, a noção de que o seu credo particular difere de todas as demais (supostamente equivocadas) crenças; em segundo lugar, que é só por causa de acontecimentos extraordinários ou a real presença de agentes sobrenaturais que as idéias religiosas têm tomado forma. Pelo contrário, agora sabemos que todas as versões de religião são baseadas em suposições tácitas muito semelhantes, e que tudo leva a imaginar que agentes sobrenaturais são mentes humanas normais processando informação em sua forma mais natural.

Sabe-se que, mesmo aceitando-se essas conclusões, é improvável que se enfraqueça o compromisso religioso. Algumas formas de pensamento religioso parecem ser o caminho de menor resistência para os nossos sistemas cognitivos. Em contrapartida, a descrença é geralmente o resultado de um deliberado e esforçado trabalho contra nossas disposições cognitivas naturais – dificilmente é a ideologia mais fácil para se propagar.

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Pascal Boyer pertence aos Departamentos de Psicologia e de Antropologia da Universidade Washington em Saint Louis, Missouri, EUA, e é o autor do livro Religion Explained. Seu e-mail é: pboyer@wustl.edu

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Tradução livre de Brunno Frigo da Purificação

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Há uma matéria da Revista Super Interessante está bastante relacionada com esse texto (e inclusive faz referências a Pascal Boyer).

Religião: obrigado a acreditar? – parte 2

24 fev

Caso ainda não tenha lido, leia antes a parte 1 desse texto.

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Baseado em pressupostos

Uma descoberta importante é que as pessoas são conscientes somente de algumas de suas ideias religiosas. É fato que elas podem descrever suas crenças, como a de que existe um Deus onipotente que criou o mundo, ou de que há espíritos escondidos na floresta. Mas a psicologia cognitiva mostra que as crenças explicitamente acessíveis desse tipo são sempre acompanhadas por um conjunto de pressupostos tácitos que geralmente não estão disponíveis à inspeção consciente.

Por exemplo, experiências mostram que a maioria das pessoas apresentam expectativas altamente antropomórficas sobre os deuses, independente de suas crenças explícitas. Quando se conta uma história em que um deus atende a vários problemas de uma só vez, essas pessoas consideram a situação bastante plausível, pois os deuses são geralmente descritos como tendo poderes cognitivos ilimitados. Relembrando a história posteriormente, a maioria dessas pessoas diz que o deus atendeu a uma situação antes de voltar suas atenções para a próxima. As pessoas também implicitamente esperam que a mente de seu deus trabalhe de forma muito semelhante à mente humana, apresentando o mesmo processo de percepção, memória, raciocínio e motivação. Tais expectativas não são conscientes, e frequentemente estão em desacordo com suas crenças explícitas.

A pesquisa mostrou que, diferentemente de crenças conscientes, que diferem muito de uma tradição para outra, os pressupostos tácitos são extremamente semelhantes nas diferentes culturas e religiões. Essas semelhanças podem resultar das peculiaridades da memória humana. Os experimentos sugerem que as pessoas se lembram melhor de histórias que incluem uma combinação de proezas físicas fantásticas (nas quais os personagens atravessam paredes ou desaparecem instantaneamente) e características psicológicas humanas plausíveis (percepção, pensamentos, intenções). Talvez o sucesso cultural dos deuses e espíritos decorre deste viés de memória.

Os seres humanos, mesmo em tenra idade, também tendem a acolher relações sociais com estes e outros agentes não físicos. Ao contrário de outros animais sociais, os seres humanos são muito bons em estabelecer e manter relações com agentes além de sua presença física, hierarquias sociais e coligações, como por exemplo, membros temporariamente ausentes. Isto vai ainda mais longe. Desde a infância, os seres humanos constituem relações sociais duradouras, estáveis e importantes com personagens fictícios, amigos imaginários, parentes falecidos, heróis invisíveis e companheiros de fantasias. De fato, a extraordinária capacidade social dos seres humanos, em comparação a outros primatas, pode ser aperfeiçoada pela prática constante com os parceiros imaginários ou inexistentes.

É um pequeno passo ter esta capacidade de se relacionar com agentes não-físicos para conceituar os espíritos, os antepassados mortos e os deuses, que não são nem visíveis nem tangíveis, mas são socialmente envolvidos. Isto pode explicar porque, na maioria das culturas, pelo menos alguns dos agentes sobre-humanos em que as pessoas acreditam apresentam preocupações morais. Esses agentes são freqüentemente descritos como tendo acesso completo somente às ações moralmente relevantes. Experiências mostram que é muito mais natural pensar que “os deuses sabem que eu roubei esse dinheiro” do que “os deuses sabem que eu comi mingau no café da manhã”.

Além disso, a neurofisiologia do comportamento compulsivo em humanos e outros animais está começando a lançar luz sobre os rituais religiosos. Estes comportamentos incluem ações estereotipadas e bastante repetitivas que os participantes sentem que devem fazer, mesmo que a maioria dessas ações não apresente resultados observáveis claros, como golpear o peito três vezes repetindo uma fórmula pronta. O comportamento ritualizado também é observado em pacientes com transtorno obsessivo-compulsivo e nas rotinas das crianças. Nestes contextos, os rituais são geralmente associados com pensamentos sobre a poluição e purificação, perigo e proteção, o uso necessário de determinadas cores ou números ou a necessidade de se construir um ambiente seguro e ordenado.

Sabemos agora que o cérebro humano tem um conjunto de redes de segurança e precaução, dedicadas à prevenção de riscos potenciais, tais como a predação ou contaminação. Estas redes disparam comportamentos específicos, tais como limpeza e controle do ambiente de cada um. Quando os sistemas se esgotam, eles produzem a patologia obsessivo-compulsiva. Afirmações religiosas sobre a pureza, a poluição, o perigo oculto dos demônios à espreita, também podem ativar essas redes e tornar intuitivamente atraentes as precauções rituais (limpeza, controle e delimitação de um espaço sagrado).

Finalmente, os estudos em psicologia social e evolucionária demonstram uma capacidade especificamente humana de coalizão, que tem um impacto sobre a religião. Os seres humanos são os únicos entre os animais em manter grandes coalizões estáveis de indivíduos não aparentados, unidos por forte confiança mútua. Os seres humanos evoluíram as ferramentas cognitivas para alcançar tal objetivo. Eles sabem como avaliar a confiabilidade dos outros. Eles podem recordar os episódios de interação e inferir como é o caráter das pessoas. Eles podem emitir e detectar sinais de compromisso difíceis de serem falsificados.

Essa psicologia da coalizão está envolvida na dinâmica do compromisso religioso público. Quando as pessoas proclamam a sua adesão a uma fé particular, elas aderem a afirmações das quais não se tem provas, e que poderiam ser consideradas erradas ou ridículas por outros grupos religiosos. Isso sinaliza uma vontade de abraçar às normas particulares do grupo por nenhuma outra razão, a não ser precisamente pelas próprias normas do grupo.

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Leia também a parte 3 (publicada em 27/02)

Religião: obrigado a acreditar? – parte 1

22 fev

Há um tempo atrás, deparei-me com um ensaio bastante interessante entitulado “Religon: Bound to Believe?” de Pascal Boyer, publicado na prestigiada revista científica Nature (vol. 455, de 23/10/2008), cujo texto integral em inglês pode ser encontrado aqui (PDF).

Resolvi então fazer uma tradução livre, para compartilhar o texto em português. (Caso alguém encontre algum erro de tradução, por favor me avise, para que eu atualize o texto).

Em razão de seu considerável tamanho, dividirei o texto traduzido em três partes (posts), sendo a primeira publicada hoje e as demais na quinta-feira (parte 2) e no domingo (parte 3).

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Religião: obrigado a acreditar?

Pascal Boyer explica que o ateísmo será sempre mais difícil de convencer que a religião, devido a uma enorme quantidade de traços cognitivos que nos predispõe à crença.

A religião é um produto da nossa evolução? A própria questão faz com que muitos, religiosos ou não, tenham receio por diferentes motivos. Algumas pessoas de fé temem que um entendimento dos processos subjacentes à crença poderia enfraquecê-la. Outros se preocupam com o fato de que aquilo que é dito como parte de nossa herança evolutiva possa ser interpretado como algo bom, verdadeiro, necessário ou inevitável. Outros ainda, incluindo muitos cientistas, simplesmente recusam completamente essa questão e vêem a religião como um absurdo infantil e perigoso.

Tais respostas tornam mais difícil estabelecer por que e como o pensamento religioso é tão pervasivo nas sociedades humanas – um entendimento que é especialmente relevante no atual período de fundamentalismos religiosos. Ao perguntar se a religião é uma das muitas consequências de termos o tipo de cérebro que temos, podemos lançar luz sobre que tipo de religião “vem naturalmente” à mente humana. Podemos sondar os pressupostos básicos nos quais as religiões são baseadas, por mais distintos que sejam, e examinar a relação entre religião e conflitos étnicos. Finalmente, podemos arriscar um palpite de que maneira as perspectivas são realistas para o ateísmo.

Nos últimos dez anos, o estudo evolutivo e cognitivo da religião começou a amadurecer. Ele não tenta identificar o gene ou os genes para o pensamento religioso. Também não se trata simplesmente de inventar cenários evolutivos que poderiam ter levado a religião a ser como a conhecemos. Esse estudo vai muito além. Propõe novas hipóteses e previsões testáveis. Pergunta o que na constituição humana faz com que a religião seja possível e bem sucedida. O pensamento religioso e o comportamento podem ser considerados parte das capacidades humanas naturais, assim como a música, os sistemas políticos, as relações familiares ou as coligações étnicas. Descobertas da psicologia cognitiva, da neurociência, da antropologia cultural e da arqueologia prometem mudar nossa visão sobre a religião.

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Leia também a parte 2 (publicada em 24/02)

Leia também a parte 3 (publicada em 27/02)