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Sobre a incerteza e o processo de criação

15 mar

Recentemente, terminei de reler o livro Como contar um conto, com transcrições das Oficinas de Roteiro ministradas por Gabriel García Márquez na Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de los Baños, em Cuba.

Após terem dito que “Ninguém nunca está completamente seguro do que quer fazer, até fazer… E nunca está seguro do que faz, até ver montado…”, o livro se encerra com essas palavras de Gabriel García Márquez:

“Isso é parte inseparável do processo de criação. Não há verdadeira criação sem riscos, e portanto, sem uma cota de incertezas. Eu nunca torno a ler meus livros depois de editados, com medo de encontrar defeitos que tenham passado despercebidos. Quando vejo a quantidade de exemplares vendidos e as maravilhas que os críticos dizem, dá medo descobrir que estão todos enganados, críticos e leitores, e que o livro, na verdade, é uma merda. E tem mais: sem falsa modéstia, quando fiquei sabendo que tinham me dado o Nobel, minha primeira reação foi pensar: ‘Eles acreditaram, porra! Caíram na minha lorota!’. Essa dose de insegurança é terrível, mas ao mesmo tempo necessária, para fazer algo que valha a pena. Os arrogantes, que sabem tudo, que nunca têm dúvidas, acabam dando tanta cabeçada que morrem disso…”

O Sétimo Selo

18 maio

Fazia um bom tempo que eu queria assistir ao filme “O Sétimo Selo” (1956), do renomado cineasta sueco Ingmar Bergman. Mas somente esse fim de semana que passou é que finalmente assisti a esse clássico do cinema. Não pretendo aqui escrever sua sinopse, nem tampouco fazer sua resenha, pois não sou especialista em cinema e muitos já o fizeram aqui, ali e acolá. O que pretendo compartilhar são as impressões, sentimentos e reflexões que emergiram após o término do filme.

Para quem não assistiu, resumidamente o filme narra a história de um cavaleiro cristão e seu escudeiro que, após retornarem das Cruzadas, encontram um cenário de desolação, peste e morte. Em diversas cenas, o cavaleiro se encontra com a Morte e jogam xadrez entre si.

O Sétimo Selo

A Morte e o cavaleiro jogam xadrez

Em meu entendimento, o jogo de xadrez pode ser visto como uma metáfora da vida. As peças, o tabuleiro e as regras seriam as condições básicas e em comum a todos os seres humanos. No entanto, embora existam essas condições em comum (peças, tabuleiro, regras), cada um de nós joga a sua própria maneira, conforme o contexto, valores, princípios, expectativas, medos e desejos. Embora a condição inicial seja a mesma para todos, cada jogo será diferente do outro.

E nesse jogo de xadrez, todos inexoravelmente vamos perder. Xeque-mate. Xeque-morte. Mas, apesar dessa “derrota” certa, resta-nos o aprendizado: alguns lances geniais, medíocres ou desastrosos. Independente do incontestável final a que estamos sujeitos, diga-se que viver é muito divertido e vale a pena. E talvez (eu disse talvez), caso nos seja permitido jogar outras “partidas de xadrez” em nossas existências, esses aprendizados podem se somar e fazer com que joguemos cada vez melhor o grande jogo da vida. Até que um dia, talvez, enfim alguém (cada um?) se torna capaz de vencer a Morte. Talvez…

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Texto Avulso I

18 fev

 

Carecíamos de uma decisão. Eu observava a todos, furtivamente, as cabeças baixas. Evitavam o encontro de olhares. Evitavam, evitávamos. Evitávamos na esperança de nos adiarmos a responsabilidade, de nos esquivarmos da decisão inevitável. Crescia em meu peito uma certa raiva daqueles todos, inertes como eu. Éramos tantos, a possibilidade grande de uma iniciativa louvável, um atalho para findar nossa espera e atenuar a angústia coletiva. Ninguém dizia palavra, faltava coragem para principiar frase. O silêncio incomodava, revolvia o terreno das calmarias, principiava suplício lento, angustioso.

Mas tínhamos também um certo conforto, há que se reconhecer: uns bons raios de sol, cordiais calorosos, espalhavam-se naquela grande sala. Uma torrente de luz, combatendo as trevas e minimizando aquele nosso sofrer. A iluminação, a inspiração. Inspiração que alguém juntou ânimo para dizer:

– A casa é tão grande… e agora temos só dois cômodos.

Suspirou. Expirou, expiração. Os demais esperávamos uma continuidade, um seguimento de raciocínio e conseqüências de decisão. Em seu silêncio, disse-nos que precisava calar-se. Olhei então para o outro cômodo, a porta aberta revelava um anexo de igual tamanho à sala em que nos encontrávamos. Pela mesma porta aberta, transpassava aquela intensa luz solar que alumiava o nosso aposento. Voltei-me então para a outra extremidade da sala, a fronteiriça parede de nossa liberdade. Ali, a porta estava trancada, a consenso de todos. Silenciosa conformidade. A concordância sem palavras das opiniões: continuaria fechada, pois do outro lado era perigoso.

Estávamos limitados àqueles dois aposentos: a sala e o anexo pelo qual recebíamos o sol. Inicialmente, tínhamos acesso a todos os compartimentos da casa. Mas isso foi há tempos e tempos, imemoráveis: ninguém mais se lembrava dos aposentos mais distantes, na outra extremidade da casa. Até que ouvimos os primeiros ruídos, os movimentos iniciais dos invasores. Prudentemente, trancamos aquele cômodo, no outro extremo, e nos reservamos aos demais. Depois, acostumados à privação daquele saudoso vestíbulo, tomaram-nos outras salas adjacentes. Sensatamente, nos enclausuramos nos lugares restantes, ainda numerosos e abastados. E, por inércia e costume aos tolhimentos, os ofensores usurparam quase a totalidade do edifício. Por misericórdia ou por divertimento, confinaram-nos aos dois cômodos restantes, na extremidade posterior.

Eu observava a todos, furtivamente: as cabeças baixas. Carecíamos de uma decisão.

Através da porta trancada, um ruído surdo delatou a movimentação do outro lado. Ratos. Muitos, infestantes roedores. As cabeças se levantam, os olhares se encontram na esperança de uma maior sentença, uma disposição de iniciativa. Subitamente, um estrondo maior: algo volumoso chocou-se contra o chão no misterioso aposento adjacente. Um frêmito de pavor arrepia-nos a pele. Os olhos muito abertos, esbugalhando a necessidade de algo fazer. A ameaça espreitando do outro lado da porta. Os corpos inertes, a respiração suspensa, esperando o devir.

Mirei a janela do anexo: o sol, a luz. Princípio de esclarecimento, me influi com inesperada coragem. Firmeza de propósito, vindo sabe-se lá de onde. Ali é que não podia ficar, braços cruzados e pés plantados enquanto nos expulsavam da casa. Deliberadamente levantei-me, e os olhares todos me acompanharam. Olhei fixamente a porta trancada, procurei aprovação no rosto e nos gestos de cada um. Reprovaram-me. Voltei-me para a porta trancada, os ruídos diminuindo…

Os alvoroços cessando: todo o silêncio preencheu meus ouvidos. E meus olhos só alcançavam a porta cerrada. A tendência para o escuro, inclinação ao desconhecido. Atendendo ao seu chamado, eu só via a porta para a qual eu caminhava. Se mais além pudesse ver, notaria que as feições e os trejeitos dos demais denunciavam espanto diante da irresponsabilidade de meu ato. Só a porta era visível e só o silêncio audível. Nenhuma voz ou qualquer olhar poderia censurar-me ou interromper-me a desvairada loucura, a resolução irrevogável: destrancar a porta e mergulhar na desconhecida travessia de todos aqueles cômodos obscurecidos pelo meu esquecimento.

(Brunno, 08/08/2008)