Breve reflexão sobre frustração e fracasso

7 jul
Vincent Van Gogh - Old Man in Sorrow (1890)

Vincent Van Gogh - Old Man in Sorrow (1890)

Na semana passada, em dois momentos distintos, recebi de um mesmo grande amigo dois textos, de dois autores que venho apreciando ao longo do tempo. O primeiro deles é de Luiz Felipe Pondé, entitulado “O Cálice”, publicado em 29/06/2009 no jornal Folha de São Paulo (Caderno Ilustrada). O segundo é “Crianças fora da infância”, de Contardo Calligaris, publicado no mesmo veículo em 02/07/2009. (Para não prejudicar a compreensão, reproduzo-os ao final, para quem quiser ler. E talvez você queira lê-los antes das minhas reflexões).

Gostei muito do texto do Pondé, e também apreciei bastante o do Calligaris. Em meu entender, os dois tratam de temas iguais, mas em momentos diferentes. Ambos falam do fracasso, dos losers. Mas enquanto Pondé aborda-o no início da velhice (ou “aos quarenta e cinco do segundo tempo”), Calligaris retrata-o na infância (ou aqueles que praticamente “já começaram o jogo perdendo”).

Em minha opinião, Calligaris quer mostrar justamente que o nosso cuidado e proteção com as crianças são apenas uma forma de livrar-nos de nossos próprios (atuais e futuros) fracassos (e, segundo Pondé, “na maioria dos casos” nós realmente “não damos certo”). Amparando a infância contemporânea, buscamos amenizar nossas frustrações e quem sabe recuperar-nos de nossa condição de losers, projetando para o futuro nossos sonhos irrealizados. Para que o potencial se realize no futuro – e então seremos winners – é necessário, no presente, cuidarmos dessa potencialidade.

Os textos são, portanto, complementares. E chegam numa ocasião oportuna, justamente num período em que já me percebo permeado por essas questões. O que é sucesso? E fracasso? Quais os caminhos e valores que pretendo seguir?

À beira dos 30 anos, no início do quinto setênio, talvez seja natural levantar essas questões. E, quem sabe, o tempo e o autoconhecimento ajudem a transformá-las (essas questões) em ações mais direcionadas e mais próximas aos valores e visões que ainda estou a construir. Seguindo o conselho de Paulinho da Viola, estou procurando fazer “como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar”. Afinal, acredito que ainda estou no “primeiro tempo” e com muita “bola pra rolar”.

Agradeço ao meu amigo pela partilha e pela oportunidade de reflexão.

(E, continuando, os dois textos que inspiraram esse post).

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Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2906200920.htm

O Cálice – Luiz Felipe Pondé

O filme “Last Chance Harvey” (última chance Harvey), em cartaz, “Tinha que Ser Você” em tradução ridícula, com Dustin Hoffman e Emma Thompson discute um tema duro, sem deixar de ser delicado. A história não é um mero romance de um homem e uma mulher que se encontram de forma improvável, já nos 60 anos, quando tudo tende a estar decidido e muito pouco resta a fazer. O filme descreve a vida de dois “losers” (pessoas fracassadas na vida) que se encontram e como eles apostam um no outro.
Uma das qualidades do filme é exatamente ser otimista sem ser brega, coisa rara numa cultura que preza por um otimismo de massa para retardados do tipo: “Confie no seu desejo que vai dar certo”. Não, na maioria das vezes, não dá certo, pouco importa o que você fizer.

O filme é uma anatomia do fracasso. Só a coragem pode desafiar o hábito do fracasso. A vida só sorri para os corajosos. Esta é a grandeza de Harvey, quando, aos 45 minutos do segundo tempo, arranca um sorriso da triste mulher envelhecida, até então atolada, como ele, no hábito do fracasso. E apostam numa vida improvável. Vem aos lábios: “Meu Deus, afaste de mim o cálice da covardia!”. Enquanto eu tiver coragem, minha alma respira.

A figura do “loser” é insuportável. Antes de tudo porque a maioria da humanidade é “loser” e você de 20 anos poderá ser um “loser” aos 50.

A diferença entre o título em português (romance “sessão da tarde”) e o título original (falando da última chance na vida de um homem) revela que a grandiosidade do filme não está exatamente no “amor improvável”. Mas na coragem de pessoas maduras enfrentarem o “aconchego” que o hábito pode dar, mesmo que seja o hábito da infelicidade, como diz a personagem de Emma Thompson quando confessa, ao final, mais ou menos assim: “É mais fácil quando me decepciono”.

Ele é um homem que sonhava em ser um pianista e virou um criador medíocre de jingles. Separado, sua esposa se casa de novo com um homem bem sucedido, alto e bonito. Há maior tormento para um homem baixinho, feio e pobre do que imaginar sua ex-esposa, gemendo delícias na cama entre as mãos de um homem rico, alto e bonito?

Harvey receberá dois duros golpes. Primeiro, será trocado por um jovem no emprego (ele recebe seu emprego de volta, e sua recusa será a chave de que escolheu mudar de vida); depois, sua filha escolherá o marido da mãe (o tal alto, rico e bonito) para levá-la ao altar -o filme se passa no momento em que ele vai a Londres para o casamento da filha.

Aliás, uma das qualidades do filme é não demonizar a ex-esposa e a filha como se elas fossem aquele tipo de mulher insensível e interesseira que habita os pesadelos dos homens fracassados. Todavia, faz parte do imaginário dos homens fracassados serem abandonados por suas mulheres. Se acreditarmos nas estatísticas, acreditaremos que as mulheres são (quase) sempre insensíveis e cruéis com seus maridos fracassados. Mulheres e filhos não suportam homens fracos e derrotados pela vida. São poucas as opções para os homens: ou o sucesso ou o sucesso.

Ele vive o inferno universal do homem derrotado: pouco dinheiro, competência medíocre, recusa sistemática das mulheres em considerá-lo parceiro. No voo para Londres, quando ele tenta entabular uma conversa com uma loira sentada ao seu lado, ela o troca pelo travesseiro de forma fulminante.
Ela trabalha no aeroporto de Londres fazendo aquelas pesquisas chatas com os passageiros. Tem coisa mais chata do que ser parado por essas mulheres passadinhas, com o corpo se desmanchando dentro de vestidos foscos, fazendo perguntas pentelhas quando você sai de um voo de 12 horas?

Ela é uma mulher tímida, meio desajeitada, e já naquela idade em que a solidão é seu par. É triste se ver como um iogurte que lentamente atravessa o prazo de validade. Sua mãe, ela mesma trocada pela secretária do marido (eles fugiram para o sul da França), passa o dia atormentando a filha pelo celular.

Com um trabalho idiota, nossa heroína enfrenta a dura verdade de que a maioria das mulheres resseca diante do fracasso amoroso, apesar da propaganda enganosa dizer o contrário. Para as mulheres, os índices de sucesso permanecem monótonos como os desertos: leveza d’alma, beleza das formas.

É um drama para gente grande, nada a ver com romance adolescente. “Losers” de 60 anos têm a experiência do tempo contra eles, não têm uma segunda chance.

 

***

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0207200923.htm

Crianças fora da infância – Contardo Calligaris

A FOLHA de 24 de junho (caderno Cotidiano) relatou uma estranha decisão do Supremo Tribunal de Justiça.

Em Mato Grasso do Sul, em 2003, dois adultos, Zequinha Barbosa e Luiz Otávio F. da Anunciação, encontraram num ponto de ônibus, contrataram e levaram para um motel três moças que, na época, tinham 13, 14 e 15 anos. De uma delas, Anunciação tirou e armazenou fotos pornográficas.

Em 2004, em primeira instância, Barbosa e Anunciação foram condenados, respectivamente, a cinco e sete anos de reclusão. Recorreram e, no ano seguinte, foram absolvidos pelo Tribunal de Justiça. Barbosa alegou que não participou do sexo, e Anunciação que ele não sabia que as garotas eram menores de 18 anos.

Foi a vez da Procuradoria recorrer, e a coisa chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu assim: Anunciação é culpado por ter armazenado imagens pornográficas de uma menor, mas ele e Barbosa são absolvidos do crime de ter tido relações sexuais com menores. Por quê? Porque o Tribunal “considerou que não é crime manter relações sexuais com menores de 18 anos que sejam prostitutas”. Ou seja, como não foram eles que “iniciaram” as meninas (ao sexo e à prostituição), eles não têm culpa.

Curiosa contradição: se não é crime transar com uma menor que já transou, não se entende por que seria crime tirar e armazenar fotos pornográficas da mesma menor. Afinal, vai ver que alguém já tirou uma foto dela no passado.

Mas isso é o de menos. Na linha de pensamento do STJ, também não haveria por que proibir o trabalho de crianças que já pediram esmola no farol -afinal, já trabalharam, não é? Da mesma forma, não seria crime estuprar uma mulher que já foi estuprada. E o que acontece com assaltar alguém que já foi assaltado? Ainda bem que, por sorte, não dá para matar alguém que já foi morto.

A decisão do STJ não é uma excentricidade. Ao contrário, ela é reveladora de uma verdade que está escondida atrás de nossa “proteção” da criança e do adolescente.

Nossa cultura decidiu separar as crianças dos adultos. Instituímos, por assim dizer, a infância como tempo da vida que deveria ser protegido tanto das necessidades (crianças não devem ganhar seu pão) quanto do desejo (chegamos a negar a sexualidade infantil).

Tudo isso, aos poucos, acabou amparando efetivamente as crianças, mas a intenção inicial não era, propriamente, a de lhes reservar um destino melhor. Tratava-se de responder a uma necessidade dos adultos: mais ou menos duzentos anos atrás, com a progressiva crise de nossa fé no além e na eternidade das almas, as crianças se tornaram oficialmente nossa grande (e talvez única) garantia de continuidade, se não de eternidade. Morremos, e as crianças têm a missão de dar seguimento à nossa vida. Claro, gostaríamos que nosso futuro fosse melhor que nosso presente, portanto queremos que as crianças encenem, para nosso contentamento, uma visão de paraíso que compense nosso purgatório ou inferno cotidianos.

Qual melhor consolação, para nós, cujas esperanças foram frustradas, do que a de contemplar nas crianças a felicidade que nos escapa? Somos infelizes e a vida é dura? Pois bem, faremos o que é preciso para que as crianças sejam (ou pareçam) felizes.

Em suma, amamos nas crianças apenas um sonho de nosso próprio futuro. E as crianças que não são “aptas” a encenar esse sonho não são propriamente crianças, pois o que definiria as crianças (as que queremos proteger) não seria sua idade, mas sua capacidade de encenar uma infância feliz.

Pois bem, a decisão do STJ é fiel a essa inspiração originária de nossa cultura: pouco importa que ela tenha 12, 13, 15 anos ou menos, uma menor que se vende num ponto de ônibus já não tem mais como encenar para nós a vinheta da infância feliz. Portanto, ela não é mais “criança”. Transar com ela não é mais transar com uma criança, não é?

Essa lógica, aliás, vale para todas as crianças que, por uma razão ou outra, não podem mais (se é que um dia puderam) encenar o cartão postal sorridente que chamamos infância -por exemplo, as que encontramos nas esquinas ou dormindo debaixo das marquises de nossas ruas.

Em suma, o STJ decidiu como se quisesse proteger não as crianças (como manda a letra da lei), mas o mito da infância. A Procuradoria recorrerá. Veremos como decidirá o Supremo Tribunal Federal.

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3 Respostas to “Breve reflexão sobre frustração e fracasso”

  1. Mário 08/07/2009 às 11:09 #

    Belos textos e bela costura, Brunno.

  2. Silmara Franco 09/07/2009 às 00:06 #

    Oi, Brunno!
    Vim retribuir a visita… e tive uma ótima surpresa.
    Belos textos, como disse o moço aí em cima.
    Não fique ausente por tanto tempo, rapaz.
    Um beijo,
    Silmara Franco
    http://www.fiodameada.wordpress.com

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